segunda-feira, 4 de julho de 2011

Tia Maria



Por vezes, dou por mim a pensar na morte daqueles que me são mais queridos. Imagino as diversas circunstâncias em que poderá ocorrer, o que eu faria nesse momento, como ficaria sem eles. Nesses momentos, sinto um sofrimento e um medo aterradores. Não sei porque o faço. Talvez inconscientemente me esteja a preparar para um dia enfrentar o facto de que os vou perder. Talvez estes pensamentos me façam dar mais valor ao que sinto por cada um deles, talvez me façam querer aproveitar melhor a vida ao seu lado. Talvez...
Também já tinha imaginado a morte da minha tia Maria. Era uma senhora já com os seus 92 anos, muito doente há alguns anos. Sabia que me ia doer. A minha tia Maria era minha tia-avó, assim como todos os meus tios e tias, pois os meus pais não têm irmãos. Por isso, sou muito chegada a eles, porque são os meus únicos tios.  
São muitas as recordações de infância que guardo da minha tia Maria... Durante muito tempo, enquanto era pequenina, tratava-a por "mana Maria", pois era assim que ouvia dizer à minha avó e à minha outra tia. A minha tia Maria casou-se com um senhor, o meu tio Zé, que toda a vida foi pescador. Durante muitos anos viveram os dois numa casa muito modesta na ilha de Faro, situada mesmo junto à barra, até que um dia , vencidos pela idade, se mudaram para a cidade e a casa da praia passou a ser só para férias. Por ser mulher de pescador, a minha tia Maria sabia temperar o peixe de sal como mais ninguém. Não sei porquê, mas o peixe temperado pela mão dela tinha outro sabor.
Foi graças aos meus tios que eu acabei por nascer em Faro, apesar de toda a vida ter vivido no Alentejo. Os meus pais estavam a passar férias na casa dos meus tios e eu resolvi nascer antes do tempo previsto.
As nossas estadias na praia de Faro eram sempre momentos de muita alegria e convívio em família. Eu, os meus pais, e uns aninhos mais tarde também o meu irmão, levávamos connosco os meus avós e a nós juntavam-se os meus primos - o único filho da minha tia Maria, a mulher dele, e os dois filhos, que são da minha idade e da idade do meu irmão. A minha outra tia, emigrante em França, vinha de férias em Agosto e também se juntava a nós. Naquela altura (e penso que agora também), chegar à ilha de Faro só era possível de barco ou a pé. Como não cabíamos todos no barco de uma vez, o meu tio ia levar uns e depois vinha buscar os outros, mas também foram muitas as vezes em que aqueles ficavam para último e tinham melhor perna acabavam por ir a pé, debaixo de um sol abrasador, tal era a desmotivação da espera que o meu tio fizesse as várias viagens. É que para além das pessoas propriamente ditas, havia as bagagens - as roupas para as crianças (e para os adultos), os brinquedos para as crianças se entreterem, a comida que tinha de se levar já a contar com vários dias, os presentes todos que a minha avó e o meu avô levavam do Alentejo para os meus tios (essencialmente frutas e legumes frescos da horta, enchidos e queijos) e ainda a quantidade monstruosa de coisas que a minha tia que vivia em França precisava sempre. Escusado será dizer que eram sacos e saquinhos que nunca mais acabavam. Naqueles dias, os almoços e os jantares eram sempre muito demorados, passávamos horas sentados à mesa, a comer e a beber, mais pelo convívio do que propriamente pela fome ou pela sede. Acordávamos cedo, pois com tudo o que havia para disfrutar lá fora, não havia tempo para dormir. Só depois do almoço, pela hora de mais calor é que quem quisesse, tinha direito a sesta. Durante o dia apanhávamos banhos de sol na ria ou no mar, conforme apetecesse (era só uma questão de se ir para a parte da frente ou para a parte de trás da casa e estava tudo ali) e dávamos longos passeios ao pôr-do-sol, a pé ou de barco. Eu, o meu irmão e os meus primos brincávamos imenso e sim, também fazíamos birras, quando calhava. Lembro-me ainda que de quando em vez ia a família toda apanhar conquilhas (as conhecidas "cadelinhas") para a praia ao fim do dia, que a  minha tia cozinhava e ficavam de comer e chorar por mais. Nem imaginam a saudade que tenho destes tempos...
Depois, durante o ano, os convívios aconteciam no Natal e no dia de Ano Novo, na Páscoa e num ou outro aniversário. Lembro-me do ar enérgico, sorridente e brincalhão com que o meu tio Zé cumprimentava toda a gente. Irradiava felicidade e contagiava-nos com a sua alegria de viver. A minha tia Maria, mais contida, sorria e abraçava-nos a todos com um longo e apertado abraço, daqueles de quem mata saudades de há muito tempo. Antes ou depois do jantar, logo que houvesse um bocadinho que lhe permitisse deixar a cozinha, onde também estava a minha avó e a minha outra tia, a minha tia Maria sentava-se à lareira, puxava-me para o seu colo e conversava comigo. Contava-me histórias da sua infância, que eu me deleitava a ouvir, perguntava-me da minha vida na escola e do que eu queria ser quando fosse grande, fazíamos planos para as próximas férias de Verão na casa da praia. E dizia-me sempre "telefona à tia, filha", e eu, com a minha falta de entendimento da altura, lá ia faltando às promessas. Gostava da serenidade que aquela tia me transmitia, com uma maneira tão diferente de ser das outras duas irmãs, também diferentes entre si, mas em comum tinham a energia e uma certa forma de estar controladora de tudo o que se passava à sua volta. Enquanto a minha avó animava os convívios com o seu ar bem disposto, a minha outra tia era quem controlava a cozinha. A minha tia Maria, sentava-se calmamente no seu canto e ia falando com este e aquele, até ao momento de puxar os sobrinhos e os netos para o colo, com quem se entretinha a noite toda.
Faz hoje uma semana que a minha tia Maria, a "mana Maria", faleceu.
Lembrar-me de si, tia, é lembrar-me dos seus cabelos brancos (curtos e todos brancos, foi assim que a conheci desde sempre), é lembrar-me do seu ar angelical, da sua simplicidade no vestir, apenas adornado  por um colar curto de pérolas e uns brincos a condizer. Lembrar-me de si, tia, é lembrar-me do quanto era pequenina (a mais pequenina da família, apenas com cerca de 1,50 m), talvez por isso eu a sentisse de alguma forma mais próxima de mim quando era pequena; depois cresci, e era eu que tinha de me curvar para a abraçar. Lembrar-me de si, tia, é lembrar-me da sua voz doce, sempre muito calma, pausada e serena no falar, é lembrar-me da sua infinita bondade e que tanto lhe transparecia no olhar, nos gestos e no ser.
Faltei às minhas promessas tia, mas vou guardá-la sempre num cantinho muito especial.



8 comentários:

João Roque disse...

Mas que post mais lindo...
Não há como contarmos coisas nossas para nos "empolgarmos" e as palvras saem sem custo e juntamos-las sem qualquer esforço.
Os meus pêsames pelo falecimento dessa tua Tia que te era muito querida.

ψ Psimento ψ disse...

Parece-me que a tia Maria teve uma vida preenchida com muita felicidade e amor de todos os que a rodeavam. E nos momentos finais não será isso que mais conta?? Claro que palavras nenhumas anulam a dor da perda mas tem de haver um altura em que sorrimos quando nos lembramos de quem partiu :)
Um bejo e o post está belíssimo!!

KarenB disse...

Pinguim, obrigada pelas tuas palavras.

Um beijinho

KarenB disse...

Psimento, a tia Maria também sofreu as suas dores. Perdeu a mãe com 16 anos, e perdeu um irmão e o pai também ainda novos. Assistiu ao divórcio do único filho e no fim da vida, viu a irmã (a minha avó) durante quase 10 anos presa a uma cadeira pela doença.
Mas no balanço final, e por ser uma mulher forte e cheia de coragem, sei que ela consideraria ter tido uma vida feliz, pois os que lhe restaram, ficaram sempre muito próximos dela, dando-lhe todo o seu amor e recebendo também o carinho que ela tanto tinha para dar.

Obrigada também pelas tuas palavras de alento.

Um beijinho

Teté disse...

Na vida de todos nós há uma tia que nos lembra dos melhores tempos de infância. Também tive uma tia Marita que nos levava a passear, contava histórias de encantar e fazia vestidinhos para as bonecas (da minha irmã, que eu preferia bolas e carrinhos). Não era doce, mas sim rebiteza! E que saudades ainda hoje tenho dela... :)

É sempre de lamentar a morte de alguém que amamos, mas a verdade é que essas pessoas são eternas no nosso coração!

Beijocas!

maria disse...

Olá Karen, vim agradecer e retribuir a tua visita :)

Lamento a morte da tua Tia Maria :(

As pessoas só morrem verdadeiramente quando nos esquecemos delas...

Muito bonita esta tua homenagem :)

Beijinho :)

KarenB disse...

Teté,

Também já tinha lido algumas coisas lá no teu blog sobre a tua tia Marita, de quem falas sempre com tanto carinho.

E sim, claro, apesar de fisicamente a minha tia Maria já não estar entre nós, continuará sempre nos pensamentos e nos corações daqueles que lhe eram mais queridos - o marido - o meu tio, que tanto está a sofrer -, o filho, os netos, as irmãs e os sobrinhos.

Beijinhos

KarenB disse...

Olá Maria!

Muito obrigada pela tua visita e sê muito bem-vinda!

Obrigada também pelas tuas palavras!

Um grande beijinho