terça-feira, 21 de junho de 2011

A Menina do Mar, de Sophia de Melo Breyner Andresen - Parte I



«Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar. Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia onde cresciam lírios brancos e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas.
Nessa casa morava um rapazito que passava os dias a brincar na praia.
Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos. Mas durante a maré alta os rochedos estavam cobertos de água. Só se viam as ondas que vinham crescendo de longe até quebrarem na areia com um barulho de palmas. Mas na maré vazia as rochas apareciam cobertas de limo, de búzios, de anémonas, de lapas, de algas e de ouriços. Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas. E a água do mar era transparente e fria. Às vezes passava um peixe, mas tão rápido que mal se via. Dizia-se «Vai ali um peixe» e já não se via nada. Mas as vinagreiras passavam devagar, majestosamente, abrindo e fechando o seu manto roxo. E os caranguejos corriam por todos os lados com uma cara furiosa e um ar muito apressado. 
O rapazinho da casa branca adorava as rochas. Adorava o verde das algas, o cheiro da maresia, a frescura transparente das águas. E por isso tinha imensa pena de não ser um peixe para poder ir até ao fundo do mar sem se afogar. E tinha inveja das algas que baloiçavam ao sabor das correntes com um ar tão leve e feliz.


Em Setembro veio o equinócio. Vieram marés vivas, ventanias, nevoeiros, chuvas, temporais. As marés altas varriam a praia e subiam até à duna. Certa noite, as ondas gritaram tanto, uivaram tanto, bateram e quebraram-se com tanta força na praia, que, no seu quarto caiado da casa branca, o rapazinho esteve até altas horas sem dormir. As portadas das janelas batiam. As madeiras do chão estalavam como madeiras de mastros. Parecia que as ondas iam cercar a casa e que o mar ia devorar o Mundo. E o rapazito pensava que, lá fora, na escuridão da noite, se travava uma imensa batalha em que o mar, o céu e o vento se combatiam. Mas por fim, cansado de escutar, adormeceu embalado pelo temporal.
De manhã quando acordou estava tudo calmo. A batalha tinha acabado. Já não se ouviam os gemidos do vento, nem gritos do mar, mas só um doce murmúrio de ondas pequeninas. E o rapazinho saltou da cama, foi à janela e viu uma manhã linda de sol brilhante, céu azul e mar azul. Estava maré vaza. Pôs o fato de banho e foi para a praia a correr. Tudo estava tão claro e sossegado que ele pensou que o temporal da véspera tinha sido um sonho.
Mas não tinha sido um sonho. A praia estava coberta de espumas deixadas pelas ondas da tempestade. Eram fileiras e fileiras de espuma que tremiam à menor aragem. Pareciam castelos fantásticos, brancos mas cheios de reflexos de mil cores. O rapaz quis tocar-lhes, mas mal punha neles as suas mãos os castelos trémulos desfaziam-se.
Então foi brincar para as rochas. Começou por seguir um fio de água muito claro entre dois grandes rochedos escuros, cobertos de búzios. O rio ia dar a uma grande poça de água onde o rapazinho tomou banho e nadou muito tempo. Depois do banho continuou o seu caminho através das rochas. Ia andando para o sul da praia que era um deserto para onde ninguém ia. A maré estava muito baixa e a manhã estava linda. As algas pareciam mais verdes do que nunca e o mar tinha reflexos lilases. O rapazinho sentia-se tão feliz que às vezes punha-se a dançar em cima dos rochedos. De vez em quando encontrava uma poça boa e tomava outro banho. Quando ia já no décimo banho, lembrou-se que deviam ser horas de voltar para casa. Saiu da água e deitou-se numa rocha a apanhar sol. 


«Tenho de ir para casa», pensava ele, mas não lhe apetecia nada ir-se embora. E, enquanto assim estava deitado, com a cara encostada às algas, aconteceu de repente uma coisa extraordinária: ouviu uma gargalhada muito esquisita, parecia um pouco uma gargalhada de ópera dada por uma voz de «baixo»; depois ouviu uma segunda gargalhada ainda mais esquisita, uma gargalhada pequenina, seca, que parecia uma tosse; em seguida uma terceira gargalhada, que era como se alguém dentro de água fizesse «glu, glu». Mas o mais extraordinário de tudo foi a quarta gargalhada: era como uma gargalhada humana, mas muito mais pequenina, muito mais fina e muito mais clara. Ele nunca tinha ouvido uma voz tão clara: era como se a água ou o vidro se rissem.
Com muito cuidado para não fazer barulho levantou-se e pôs-se a espreitar escondido entre duas pedras. E viu um grande polvo a rir, um caranguejo a rir, um peixe a rir e uma menina muito pequenina a rir também. A menina, que devia medir um palmo de altura, tinha cabelos verdes, olhos roxos e um vestido feito de algas encarnadas. E estavam os quatro numa poça de água muito limpa e transparente toda rodeada de anémonas. E nadavam e riam.
- Oh! Oh! Oh! - ria o polvo.
- Que! Que! Que! - ria o caranguejo.
- Glu! Glu! Glu! - ria o peixe.
- Ah! Ah! Ah! - ria a menina.
Depois pararam de rir e a menina disse:
- Agora quero dançar.
Então, num instante, o polvo, o caranguejo e o peixe transformaram-se numa orquestra.
O peixe, com as suas barbatanas, batia palmas na água.
O caranguejo subiu para uma rocha e com as suas tenazes começou a tocar castanholas.
O polvo trepou para cima dos rochedos e esticando muito sete dos seus oito braços prendeu-os pelas pontas com as suas ventosas na pedra e, com o braço que tinha ficado livre, começou a tocar guitarra nos seus sete braços. Depois pôs-se a cantar.
Então a menina saiu da água, subiu para uma rocha e principiou a dançar. E a água junto dos seus pés ia e vinha e bailava também.
Escondido, atrás do rochedo, o rapaz, imóvel e calado, olhava.
Quando a cantiga e a dança acabaram, o polvo pegou na menina e com os seus oito braços muito escuros pôs-se a embalá-la.
- Vem aí a maré alta, são horas de nos irmos embora - disse o caranguejo.
- Vamos - disse o polvo.
Chamaram o peixe e puseram-se os quatro a caminho. O peixe ia à frente a nadar com a menina ao lado, depois vinha o polvo e no fim o caranguejo, sempre com um ar muito desconfiado e furioso.
Foram indo por entre as areias e as rochas, até que chegaram a uma gruta para onde entraram os quatro. O rapaz quis ir atrás deles, mas a entrada da gruta era muito pequena e ele não cabia. E como a maré estava a subir, teve que se ir embora, pois se ali ficasse morria afogado.
Foi para casa muito espantado com o que tinha visto e durante esse dia não pensou noutra coisa. Na manhã seguinte mal acordou foi a correr para a praia. Foi pelo caminho da véspera, tornou a esconder-se atrás das duas pedras, espreitou e ouviu as  mesmas gargalhadas da véspera. A menina, o caranguejo, o polvo e o peixe estavam a fazer uma roda dentro de água. Estavam divertidíssimos. (...)» 


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«A Menina do Mar», para além de ser um dos contos infantis mais conhecidos da grande mulher que foi Sophia de Melo Breyner Andresen, foi também o que mais me marcou na minha infância (nem sabem as voltas que dei às gavetas, armários e estantes da minha casa no Alentejo para o encontrar e trazer para cá...). 
Para quem não conhece, trata-se de uma história de amizade entre um rapaz e uma menina, em que ambos procuram dar a conhecer ao outro o seu mundo, respectivamente, a terra e o mar. A inocência de ambos, a simplicidade das pequenas coisas, os laços de amizade que se desenvolvem são exemplos do que esta grande autora retrata de uma forma absolutamente encantadora e mágica.

Para não maçar quem lê, não publico já o conto na íntegra, mas para quem tiver interesse em ler ou reler, publicarei o restante muito brevemente em mais três publicações.

E porque me pareceu uma boa forma de dar as boas-vindas ao Verão!

8 comentários:

Wolverine disse...

Obrigado por reanimares esta história na minha mente =)

Bjinhos*

João Roque disse...

Mais uma faceta, desconhecida de muitos, dessa grande Senhora das letras que foi Sophia.

Unknown disse...

uma bela história sem dúvida :)

ψ Psimento ψ disse...

Olá Karen, como sabes tenho andado fugido por causa da faculdade mas estou finalmente de féeeeeeeeeeeeerias. Quanto ao teu post, eu adoro a Menina do Mar e foi um prazer poder reviver a historia que é deliciosa. Lembro-me bem de ter lido na escola na disciplina de Português e ser dos poucos que dava valor e que realmente leu a historia toda. Acho que foi um dos livros, juntamente com o principezinho, que motivou o meu gosto pela leitura e a importância que dou à amizade e à lealdade.
Um beijo e obrigado por me refrescares boas memorias de infância.

KarenB disse...

Weasley,
Não tens nada de agradecer. Foi um prazer muito grande para mim reler este conto e um prazer ainda maior partilhá-lo aqui, porque achei que tal como eu, mais jovens se lembrariam dele e gostariam de o reencontrar.
Sou muito agarrada às minhas memórias de infância, sabes. Acho que nunca é demais recordar, porque nesses momentos sou feliz e sinto-me até criança outra vez. Se conseguir por vezes despertar esses sentimentos em alguém, fico feliz.

Beijinhos ;)

KarenB disse...

Pinguim,
Gostei muito da forma como caracterizaste a autora, homenageando-a tão bem. E de facto, é uma pena que muitos não conheçam esta sua faceta, tão terna, tão encantadora e igualmente cheia de talento.

Beijinhos

KarenB disse...

Olá Fábio,
Sim, é um conto maravilhoso!
Já publiquei a 2ª parte e até sexta feira publicarei o conto na íntegra.
Devias ler o restante!!

Beijinhos

KarenB disse...

Olá Psimento!!!
Que bom que finalmente estás de férias! Parece-me, a julgar pelo que foste contando nos últimos tempos, que são muuuiito merecidas! Aproveita bem agora para descansar, para te divertires, para ver muitos filmes e ler muitos livros, e claro, para estar muito com o Theo. :)
Quanto ao conto, foi um prazer muito grande partilhá-lo. E fiquei muito feliz por perceber que outras pessoas o recordam com o mesmo carinho que eu.
Foi um dos primeiros livros que me lembro de ler e sem dúvida um dos que mais me marcou, tal como dizes.

Se quiseres, lê o restante. Vou publicá-lo todo até sexta-feira!

Beijinhos e desejo-te boas férias, claro!!!!