Há dias, uma troca de comentários com a
Nina deu-me ideia para escrever o texto que se segue.
Como qualquer bom jurista, gosto de discutir qualquer assunto e gosto especialmente de uma boa discussão. Tudo ou quase tudo o que esteja relacionado com as artes do Direito desperta o meu interesse, a minha curiosidade e um "gostinho" por saber sempre mais. Por isso, várias vezes, a propósito de uma notícia no telejornal, de algo que leio, de uma conversa informal com um amigo ou até mesmo de um qualquer episódio da vida que observo, dou por mim a pensar no assunto em termos técnicos, a pesquisar mais qualquer coisa, a relembrar o que estudei na faculdade. É um "bichinho" que adquiri durante o curso e que me ensinou a analisar a realidade daquilo que nos rodeia com outros olhos.
Pois bem, a minha conversa com a Nina despertou o tal "bichinho" e o assunto está relacionado com as relações de afinidade.
Determina o artigo 1584º do Código Civil que a afinidade "é o vínculo que liga cada um dos cônjuges aos parentes do outro". Assim, quando falamos da sogra e do sogro, da nora e do genro, da enteada e da madrasta, entre outras, é de relações de afinidade que estamos a falar.
Até há bem pouco tempo atrás, determinava também o artigo 1585º do mesmo Código que "a afinidade determina-se pelos mesmos graus e linhas que definem o parentesco e não cessa com a dissolução do casamento". Ora, convém dizer desde já, para a coisa ficar bem explicadinha (e sem querer entrar nas causas de invalidação do casamento, que igualmente levam à sua extinção), que as formas de dissolução do casamento são apenas duas: a morte de um dos cônjuges e o divórcio entre eles.
Ora, com isto, estão a ver, sogra uma vez, sogra toda a vida...
Felizmente, ou não, a tão famosa lei 61/2008, de 31 de Outubro, que veio alterar o regime jurídico do divórcio e que tanto deu que falar (com direito a veto presidencial pelo meio...), veio alterar esta situação, acrescentando duas palavrinhas - "por morte" - ao supra citado artigo 1585º do Código Civil, que ficou assim: "a afinidade determina-se pelos mesmos graus e linhas que definem o parentesco e não cessa com a dissolução do casamento por morte". Ora, não é necessário um grande esforço interpretativo para daqui se retirar a seguinte conclusão: actualmente, as relações de afinidade cessam quando a causa de dissolução do casamento é o divórcio, mantendo-se no caso do casamento se dissolver por morte de um dos cônjuges. E isto, quer estejamos a falar de um casamento celebrado hoje ou de um casamento celebrado anteriormente à referida alteração legislativa (dispensam-se explicações técnicas sobre esta parte, para não "maçar" quem lê).
Até pode fazer sentido que as relações de afinidade se mantenham no caso de dissolução do casamento por morte de um dos cônjuges. Seja um certo "pudor social" a falar ou não, mas a verdade é que nesses casos, normalmente, o falecimento de um dos cônjuges não faz cessar as relações do sobrevivo com os parentes do finado. Mas manter aquele vínculo nos casos de divórcio... faria sentido? E eliminá-lo?
E perguntam vocês, e bem, mas que importância tem tudo isto? Tem, e muita. Vou-vos dar um exemplo.
Anteriormente à referida lei, o jovem Pedro Passos-Portas decidia divorciar-se da mulher, a igualmente jovem Andreia Madalena Custódio de Oliveira Benquerença Seabra Vaz Pinto Passos-Portas porque esta, apenas preocupada com a sua ascensão profissional, não vinha cumprindo os seus deveres conjugais (essencialmente na parte da comunhão de leito). Coincidência ou não, o jovem Pedro Passos-Portas já vinha há algum tempo a fazer "olhinhos" à sua muito bem conservada sogra, a Sra. Dona Beatriz Maria Custódio de Oliveira Benquerença Seabra Vaz Pinto ("olhinhos" esses que eram retribuídos, pois claro). Ora, o jovem Pedro Passos-Portas, já divorciado, não poderia casar-se com a sua sogra, pois uma vez que a relação de afinidade se mantinha apesar do divórcio, a mesma constituía também um impedimento dirimente relativo (nos termos do artigo 1602º, alínea c) do Código Civil), obstando assim ao casamento daqueles dois seres enamorados.
Outro exemplo, este, talvez um pouco mais rebuscado, mas igualmente possível, e que tanto poderia acontecer anteriormente à nova lei do divórcio como posteriormente a ela, na actualidade: a mulher, Gisberta Cócegas, e o marido, Arlindo Cócegas, vivem numa casa arrendada cuja proprietária e senhoria é a Dona Jovita Quitéria, uma senhora muito rica da aldeia da Gisberta Cócegas (que por sinal fica muito próxima da aldeia donde é natural o Arlindo Cócegas) e que, por ser muito meticulosa e "esquisitinha" até, só havia arrendado a sua casa à menina Gisberta Cócegas por ter sido professora dela na escola primária e saber que era boa pessoa e de boas famílias e essas coisas todas. Fez até questão que o contrato de arrendamento ficasse apenas em nome da menina! Ah, já agora, diga-se de passagem que a Dona Jovita Quitéria também só arrendou a sua casa porque vivia no andar de cima do mesmo prédio e assim podia "controlar" as coisas. Com Arlindo Cócegas e Gisberta Cócegas veio viver, há mais de um ano (que é como quem diz, veio passar férias e nunca mais de lá saiu), a "mãezinha" do Arlindo Cócegas - a Sra. Dona Ludovina Calhota que, por ser muito "linguaruda" e conhecida na terra por "bicicleta" (por levar as notícias das vidas de toda a gente de porta em porta), sempre teve com a Dona Jovita Quitéria uma relação de um certo "ódiozinho de estimação", pois a Dona Jovita Quitéria era uma senhora muito correcta e nunca se meteu em intrigas. Infelizmente, o casal Cócegas falece num fatídico acidente de automóvel quando decidiram finalmente, ao fim de tantos anos, gozar a sua lua-de-mel em Quarteira. E depois? - perguntam vocês. E depois, supondo que não existem outros parentes mais próximos, porque o casal não tinha filhos, porque a Dona Ludovina Calhota até era viúva e os pais de Gisberta Cócegas já tinham falecido, o arrendamento pode muito bem transmitir-se para... a Sra. Dona Ludovina Calhota, pessoa "tão cara" à senhoria e proprietária da casa, a Dona Jovita Quitéria. Claro que isto não tem mal nenhum, a não ser para a Dona Jovita Quitéria, a quem lhe esperam ainda muitas chatices e muito dinheiro gasto com serviços de advogados para conseguir tirar de lá a Sra. Dona Ludovina Calhota, que até "embirrou" que agora é que não saía mesmo. Quanto muito, a Dona Jovita Quitéria só terá de "levar" com a Sra. Dona Ludovina Calhota, a "bicicleta", durante uns (bons) tempos (anos, quiçá!). E porquê, porque a Sra. Dona Ludovina Calhota é afim da menina Gisberta Cócegas e o artigo 1106º do Código Civil determina que este é um dos efeitos da afinidade.
Se esta alteração ao artigo 1585º do Código Civil, produzida pela nova lei do divórcio, faz sentido? Até faz. Mas os efeitos perversos desta questão estão longe de ser eliminados.
Agora o marido já pode casar com a sogra, ou a mulher com o sogro, uma vez divorciados. Até nos parece bem, certo? Exista amor e ao mesmo não devem ser colocadas barreiras, porque o amor é para ser vivido, e vivido na sua plenitude. Mas agora reparem num outro exemplo: a Sra. Benvinda Pedrelica, mãe afectiva do menino Miguel Zonga, sua madrastra, portanto (e a quem criou quase desde pequenino), vinha sendo muito maltratada pelo marido (entenda-se, ele nunca lhe dava atenção). Então, decide divorciar-se, e fá-lo. Claro que para fazer face aos "maus tratos" a Sra. Benvinda Pedrelica vinha nos últimos tempos "procurando colo" nos braços do menino Miguel Zonga, que já não era nenhum menino, e a quem os colegas da faculdade diziam que tinha uma madrasta que era "uma brasa". Agora, com a nova alteração legislativa, a Sra. Benvinda Pedrelica, que sempre teve "um fraquinho" oculto por homens mais novos, vai casar com o menino Miguel Zonga... Com a nova alteração legislativa deixou de existir a relação de afinidade entre ambos, é certo, mas a Sra. Benvinda Pedrelica não deixou de ser aquela que sempre foi a sua mãe afectiva... Bizarro? Mas agora, possível.